O dinheiro não volta

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Há uma estrada tortuosa entre a descoberta de fraudes que sugam milhões do dinheiro público e a volta desses recursos à sociedade.

Zero Hora mostra nesta reportagem como os cofres públicos ainda esperam o ressarcimento de pelo menos R$ 578 milhões desviados em cinco dos maiores escândalos de corrupção das últimas duas décadas.

A decisão da Justiça Federal favorável à devolução aos cofres públicos de R$ 55 milhões dos R$ 169 milhões desviados durante a construção do fórum trabalhista de São Paulo, no final dos anos 1990, é um pequeno alento no combate à corrupção: tão difícil quanto prender corruptos é reaver os milhões amealhados nos golpes que proliferam país afora – fato que contribui para reforçar a sensação de que o crime compensa.

Zero Hora revisitou cinco das fraudes mais rumorosas dos anos 1990 e 2000 no Rio Grande do Sul. Casos que teriam aliviado R$ 578 milhões dos cofres públicos, suficientes para asfaltar os acessos de 78 dos 105 municípios gaúchos que amargam estradas de chão batido.

Parte mais visível dos ataques à corrupção, as operações que envolvem polícia, Ministério Público e Judiciário são apenas o começo de um caminho tortuoso em busca do dinheiro público desviado. Assim que chegam à Justiça abarrotada, os processos tramitam no ritmo lento das citações, perícias, recursos, liminares e cautelares. Alguns, como o caso do fraudadores de concursos em prefeituras gaúchas denunciados na Operação Gabarito, espalham-se por dezenas de comarcas e se perdem de vista até mesmo dos policiais e promotores que os descobriram, investigaram e denunciaram à Justiça.

A dificuldade em reaver os valores causa um prejuízo social comparável ao financeiro: o desânimo, ilustrado abaixo por um delegado envolvido na Operação Solidária, que desvelou há quatro anos um rombo de R$ 172 milhões (em valores atuais).

– O que temos de patrimônio sequestrado é cerca de R$ 10 milhões. Nada mais. O resto do ressarcimento deve ser determinado em cada sentença. Nossos filhos verão.

Para quem está inclinado a roubar, a perspectiva de ter de devolver o butim só na geração seguinte funciona como um estímulo, avalia o economista Gil Castello Branco, um dos fundadores da ONG Contas Abertas.

– A sensação de impunidade estimula que a corrupção siga florescendo – afirma.

O procurador-geral do Ministério Público de Contas, Geraldo da Camino, considera que houve avanços no combate aos desvios, mas insuficientes: ainda é possível atrasar os processos com recurso após recurso. Falta ao Tribunal de Contas do Estado, de acordo com Da Camino, a possibilidade de bloqueio cautelar de bens – ou seja, congelar o patrimônio dos envolvidos quando há indícios de corrupção.

– Bloquear é a única garantia de que o Estado poderá ser ressarcido – diz o procurador-geral.

Reaver os recursos é tarefa difícil, mas não impossível, lembra Da Camino, que ajudou a investigar a fraude milionária no INSS por Jorgina de Freitas, presa em 1992. Uma equipe do órgão já recuperou perto da metade dos R$ 200 milhões devidos pela advogada ao INSS, boa parte em contas na Suíça e Estados Unidos. Porém, o bom exemplo também expõe um problema: quase duas décadas depois, a Justiça ainda tem 50 imóveis de Jorgina por leiloar.

O desafio de cobrar

Fazer os responsáveis por atos de corrupção pagarem monetariamente por seus crimes ainda é um grande desafio. Em 2001, por exemplo, uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) em 21 Tribunais de Contas revelou que apenas 4,8% do montante devido por administradores públicos flagrados em irregularidades era devolvido aos cofres públicos.

Dez anos depois, o Tribunal de Contas da União continua mantendo o mesmo padrão de ineficiência: de cada R$ 100 de multas administrativas aplicadas, consegue receber, em média, apenas R$ 4,70. Mas algumas soluções começam a despontar.

Em casos de sonegação fiscal – a forma mais comum de dilapidação do erário –, uma alternativa do Ministério Público vem sendo cobrar do devedor antes de instaurar processo criminal. Segundo o procurador Áureo Braga, da área de Combate aos Crimes Contra a Ordem Tributária, o mecanismo funciona porque os sonegadores temem o congelamento de bens pela Justiça. Só no ano passado, cerca de R$ 150 milhões em bens foram bloqueados pela promotoria.

Outra solução, que vem sendo aplicada pelo Tribunal de Contas gaúcho, é responsabilizar os atuais administradores pelos desvios cometidos por antecessores. Um acordo firmado com o Ministério Público permite que o TCE enquadre prefeitos ou presidentes de Câmaras de Vereadores. Caso a dívida não seja cobrada, o administrador incorre em renúncia fiscal e descumprimento de decisão judicial, o que pode resultar em crime de responsabilidade e torná-lo inelegível por oito anos.

– Hoje, mais de 84% das certidões de débito são executadas – garante o diretor-geral do TCE, Valtuir Pereira Nunes.

A eficiência também é garantida pelo projeto Acompanhamento do Cumprimento de Decisões (ACD), implantado depois da pesquisa da USP, quando o TCE obteve um aproveitamento de 9% – o dobro da média nacional, mas ainda baixo. Com o ACD, o TCE remete ao MP as certidões de débito em relação as quais não houve manifestação do administrador responsável pela cobrança no prazo de 90 dias. O MP passa então a monitorar as ações de cobrança.

ELTON WERB E RODRIGO MÜZELL

Multimídia

ENTREVISTA

“A corrupção se realimenta”

Gil Castello Branco – Fundador da ONG Contas Abertas

O economista Gil Castello Branco é um dos fundadores da Contas Abertas, uma ONG criada com a proposta de lutar pela transparência das finanças públicas e apontar caminhos para uma gestão mais ética e eficiente. Leia a entrevista:

Zero Hora – Por que é tão difícil para o setor público reaver dinheiro desviado em esquemas de corrupção?

Gil Castello Branco – A morosidade da Justiça é um problema muito grande. Mesmo quando os tribunais de controle verificam as irregularidades, impõem multas ou determinam a devolução, há uma quantidade grande de recursos jurídicos. Enquanto esses recursos tramitam, o infrator vai transferindo seus bens para terceiros e, às vezes, quando se chega ao final, sequer tem patrimônio para ressarcir o Estado. É um processo extremamente moroso.

ZH – A dificuldade em recuperar o dinheiro roubado influencia na reincidência da corrupção?

Castello Branco – Essa história de que o crime compensa, essa sensação que o brasileiro tem, realimenta a corrupção. O criminoso frio faz o cálculo e considera que o risco compensa, porque, se for apanhado, pode prolongar o processo quase indefinidamente. É como esse caso do TRT: a fraude levou mais de 15 anos para ter uma situação em que ele teria de pagar alguma coisa – e foi uma parcela pequena. Nesse raciocínio, os crimes prescrevem e a corrupção se realimenta.

ZH – Não foi uma boa notícia a devolução de valores do TRT-SP?

Castello Branco – Claro que R$ 55 milhões é um valor significativo. Mas a dívida original, se fosse atualizada, seria muito maior (a Advocacia-Geral da União calcula que os R$ 169 milhões desviados em 1999 chegariam a R$ 1 bilhão hoje). Para Luiz Estevão, pagar esse valor interessa muito, porque zera o episódio e libera seus bens que estão bloqueados. Então, é uma evidência do problema. Sem contar que a demora processual faz com que a população perca a memória da fraude. Quem tem 20 anos de idade hoje nunca ouviu falar no caso.

ZERO HORA