ZERO HORA: Como o Trovão Azul se tornou o retrato da falência prisional no RS

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NOTA ASSTBM: Não é só o sistema prisional que está falido. A segurança pública do RS que está em colapso, sem projetos, com um governo que não elege prioridades. Se a situação é degradante para o preso, não é diferente para os brigadianos que fazem a custódia, pois compartilham do mesmo ambiente fétido e insalubre para ambos. A falta de dignidade afeta as duas partes.

Com déficit de 11,7 mil vagas para presos no Rio Grande do Sul e escassez de recursos, improviso da Secretaria da Segurança Pública já dura seis meses e depende de abertura de espaço na nova prisão, em Canoas

Por: Marcelo Kervalt

A falência do sistema carcerário gaúcho é retratada por um ônibus de 1985 e restaurado 31 anos depois para minimizar a escassez de vagas nas cadeias. Desativado desde 2013, o Trovão Azul surgiu para o secretário da Segurança Pública, Cezar Schirmer, em meados de 2016, como alternativa para devolver ao patrulhamento das ruas brigadianos e suas viaturas que ficavam em frente ao Palácio da Polícia com suspeitos presos, mas que não tinham para onde ser levados. O improviso do ônibus-cela já dura seis meses.

Até a reativação do Mercedes Benz azul, escanteado em Uruguaiana, na Fronteira Oeste, episódios emblemáticos aconteceram: presos foram algemados em lixeiras, acotovelaram-se detidos em micro-ônibus da BM, destruíram o veículo em protesto pelas más condições na qual estavam detidos e atearam fogo a carceragens provisórias de Delegacia da Polícia Civil na Região Metropolitana.

A chegada do ônibus-cela à Capital, independentemente da sua localização, sempre atingiu o já castigado efetivo da BM, que atua com 50% de déficit e salários parcelados no Estado.

— O Trovão Azul é a maior preocupação que tenho no momento — desabafa o secretário Schirmer.

Na manhã desta sexta-feira, 39 policiais estavam fora do serviço de patrulhamento na Região Metropolitana, sendo 24 apenas da Capital. Nas Delegacias de Polícia de Pronto Atendimento (DPPAs), 135 presos aguardavam vagas em presídios. No centro de triagem eram 74, o que representa lotação máxima. No Trovão Azul, havia 39 homens, totalizando 248 presos esperando para entrar no sistema cujo déficit é de 11,7 mil vagas.

— É uma situação necessária para que presos permaneçam efetivamente presos. Mas, lamentavelmente, acabamos retirando policiais das ruas — disse o subcomandante-geral da Brigada Militar, coronel Mario Ikeda.

O atual local que abriga o ônibus-cela não tem acesso pavimentado e, para chegar, algumas viaturas atolam. Lá, há um galpão de alvenaria, onde os PMs se abrigam e guardam os alimentos para presos. Há apenas dois banheiros e um dos policiais. Não há onde tomar banho e PMs reclamam do mau cheiro.

Comandante do policiamento da Capital, coronel Jefferson de Barros Jacques argumenta que se está ruim com o veículo, pior seria sem ele:

— Com o Trovão Azul, consigo deixar menos viaturas paradas — disse, referindo-se ao fato de que o ônibus-cela abriga até 30 suspeitos de crime.

A decisão de inutilizar o veículo foi novamente tomada por Schirmer. Agora, resta definir a data. O secretário chegou a anunciar a aposentadoria do coletivo em 27 de maio, mas voltou atrás no dia seguinte por não ter onde deixar os presos. Depois desse e de outros episódios em que promessas não foram cumpridas, passou a evitar se comprometer com datas.

— Quando depende só de ti, é possível dar prazo. Afinal, você é o único responsável. Mas, nesse caso, envolve Secretaria da Fazenda, de Obras, o que complica um pouco. Mas, vai ser desativado, só estamos buscando alternativas. A decisão está tomada. Não quero mais.

As alternativas são a Penitenciária Estadual de Canoas e a construção de mais um centro de triagem, ambas previstas para 40 dias, e que, juntas, totalizam 246 vagas. Enfrentar a precariedade com mais precariedade incomoda o professor da PUCRS e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, que viu por muito anos o Rio Grande do Sul se gabar de ser o único Estado que não tinha presos em delegacias de polícia.

— A falência começa com a quebra desta tradição. E o Trovão Azul é o símbolo disso tudo.

Para o sociólogo, é necessário repensar o modelo penal, “que coloca no mesmo espaço, presos perigosos e violentos com aqueles que oferecem menos risco à sociedade”, além de investir em educação e segurança pública.

PARTE DA SOLUÇÃO: Penitenciária de Canoas

Complexo prisional tem capacidade para 2,8 mil vagas, porém, apenas um módulo é ocupado atualmenteFoto: Ascom-SSP / Divulgação
Quarenta dias. Esse é o prazo dado pelo secretário Schirmer para que 150 presos passem a utilizar a Penitenciária de Canoas, tratada como alternativa para desativação do Trovão Azul. O obstáculo a ser superado, agora, é o acesso ao pátio, considerado inadequado à passagem de veículos como caminhões e ambulâncias, mas que será finalizado com uso de brita.

Para o secretário, essas vagas são suficientes, no cenário atual, para desativar o ônibus-cela, mas não para desafogar o sistema carcerário. O pleno funcionamento, com 2,8 mil presos, não tem data para acontecer.

— Acertamos com a prefeitura as melhorias no acesso. Depois, vamos começar a operar gradativamente, afinal, nem teríamos condições financeiras de mantê-la neste momento — disse Schirmer, informando que o custo mensal será de R$ 9 milhões quando todas as vagas estiverem preenchidas.

O projeto da casa prisional foi lançado no governo Yeda Crusius (PSDB), executado na gestão de Tarso Genro (PT) e cuja ocupação começou durante o mandato de José Ivo Sartori (PMDB). Anunciada em 2010 como a solução para a desativação do caótico Presídio Central, a prisão canoense ainda é vista com bons olhos pelo Ministério Público:

— O Estado tem déficit de 11,7 mil vagas. Historicamente, a construção de presídios não acompanhou o crescimento da massa carcerária. Ao mesmo tempo, como não há políticas eficientes para recuperação, 70% dos liberados retornam à prisão. Então, as cadeias esgotaram a capacidade de recolhimento. A ocupação integral de Canoas será positiva se a nova lógica implantada for mantida lá – avalia o procurador de Justiça Gilmar Bortolotto.

Na penitenciária, reincidência é baixa

Na parte que já funciona, sem facções e em condições vistas como adequadas pelo próprio MP, o retorno de presos caiu de 70% para 18%, o que indica acerto na condução.

— A amenização do déficit prisional depende de geração de vagas e programas de reinserção que diminuam a reincidência. O problema tem solução, mas passa por mudanças radicais na política carcerária. Sem isso, não produziremos a segurança desejada — concluiu.

NÃO É SOLUÇÃO: Penitenciária federal 

Próxima do desfecho, a escolha da área em solo gaúcho para construção de uma penitenciária federal está nas mãos do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Técnicos estiveram quarta-feira no Rio Grande do Sul avaliando novas opções em Charqueadas e Arroio dos Ratos, na Região Carbonífera, para a construção da unidade de segurança máxima e prometeram decisão até segunda-feira.

— Para mim, Charqueadas reúne as condições necessárias. Há mobilização da comunidade, da prefeitura e está próxima da Capital. Mas, abrimos o leque ao Depen — disse Schirmer, garantindo que Eldorado do Sul está fora dos planos.

Em Charqueadas, os técnicos do Ministério da Justiça averiguaram um terreno de aproximadamente 30 hectares. Pertencente ao município, está localizado próximo à penitenciária modulada. Em Arroio dos Ratos, a comitiva foi apresentada a uma área de cerca de 40 hectares, de propriedade do Estado, localizada às margens da BR-290.

Com capacidade padrão para 208 presos, a prisão será destinada a criminosos de alta periculosidade e não, necessariamente, abrigará detentos gaúchos. Mas Schirmer acredita em moeda de troca: recebe a unidade e manda mais detentos daqui para outros Estados.

— Temos apenas cinco presos em penitenciárias federais. Ao natural, mais presos poderão ser transferidos. Não houve nenhuma sinalização de que isso irá acontecer, mas, pelo menos, é isso que a gente espera — comentou.

Juiz da Vara de Execuções Criminais (VEC), Sidinei Brzuska é sucinto sobre a influência da penitenciária na abertura de vagas:

— O impacto é zero. Ela não se destina a presos daqui. Vamos receber criminosos de outros Estados — resumiu ao explicar que o gerenciamento sobre essas vagas é do Depen.

Sobre ser utilizada como moeda de troca, o magistrado foi direto:

— Nosso presos sempre foram aceitos. Nunca houve recusa — finalizou.

Entenda como um ônibus sucateado tornou-se alternativa à escassez de vagas no sistema carcerário do RS

Ônibus-cela fabricado em 1985 foi reativado pela Secretaria da Segurança Pública do Estado no ano passado

Sucessivos problemas enfrentados por falta de vagas no sistema prisional fizeram com que o secretário da Segurança Pública, Cezar Schirmer , optasse, no ano passado, por reativar o ônibus-cela Trovão Azul, veículo fabricado em 1985 e escanteado desde 2013. Essa história começa em outubro de 2016. Confira abaixo:

19 de outubro
As consequências do caos provocado pela superlotação do Presídio Central e
das principais penitenciárias do complexo de Charqueadas, que já afetavam carceragens da Polícia Civil, passaram a atingir o policiamento ostensivo. Uma viatura da Brigada Militar e uma da Guarda Municipal de Porto Alegre abrigam presos. Celas da 2ª e da 3ª Delegacias de Polícia de Pronto Atendimento (DPPAs) estão lotadas. Nas viaturas, PMs escoltam dois presos.

6 de novembro
Presos mantidos na carceragem da DPPA de Canoas ateiam fogo à cela. Uma policial passa mal ao inalar fumaça. Presos batem nas grades e ameaçam matar outros detidos.

7 de novembro
Schirmer admite a possibilidade de usar contêineres para abrigar detentos.

9 de novembro
Dois presos amanhecem algemados a uma lixeira em frente ao Palácio da Polícia (a imagem é a primeira que aparece nessa reportagem). À tarde, Schirmer anuncia a construção de contêineres e centros de triagem para abrigar 554 presos temporários.

10 de novembro de 2016
Por medida de segurança e para não expor os presos, o então comandante-geral da Brigada Militar, coronel Alfeu Freitas Moreira, orienta o policiamento a manter viaturas com presos em ruas menos movimentadas.

16 de novembro de 2016
Com celas de DPPAs superlotadas, presos começam a ser mantidos em um micro-ônibus da BM.

19 de novembro
Para evitar exposição e constrangimento, o micro-ônibus da BM com presos à espera de vagas em cadeias é estacionado no pátio do Palácio da Polícia. Insatisfeitos, seis detidos quebram janelas e bancos do micro-ônibus (foto abaixo). Após uma noite dentro do veículo, presos reivindicam transferência para o presídio. Mesmo após a revolta, seguem algemados dentro do micro-ônibus e são autuados por depredação.

Veículo da Brigada teve janelas e interior destruídos após seis suspeitos de crimes não aceitarem ficar detidos no localFoto: André Ávila / Agencia RBS

22 de novembro
Schirmer anuncia a utilização de um ônibus desativado como alternativa à detenção dos que aguardam vagas no sistema prisional. Surge então o Trovão Azul, ônibus-cela com capacidade para 30 detentos da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe).

24 de novembro
Policiais militares bloqueiam parcialmente uma das principais vias de Porto Alegre em horário de pico, a Avenida Ipiranga (imagem abaixo). Em frente ao Palácio da Polícia, oito presos sob custódia em sete viaturas inviabilizam o serviço de patrulha de 15 policiais.

Pelo menos oito viaturas custodiavam presos em frente ao Palácio da Polícia e causaram lentidão no trânsito na IpirangaFoto: Ronaldo Bernardi / Agencia RBS

30 de novembro
O Trovão Azul começa a receber presos. Estacionado em um pavilhão em frente à Academia da Polícia Civil, na zona norte da Capital, é apresentado como forma de suprir a necessidade de vagas enquanto são construídos os centros de triagem.

24 de fevereiro
Amontoados em uma escadaria, nove presos aguardam vagas algemados a um corrimão — alguns deles há uma semana, conforme a Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre. Sem espaço para novas algemas, dois detentos são colocados em um depósito, aprisionados a uma janela basculante. Ali, dividem espaço com sacos de lixo, materiais de construção e garrafas pet cheias de urina.

Suspeitos de crime algemados a corrimão em galpão na zona norte de Porto AlegreFoto: Ronaldo Bernardi / Agencia RBS

25 de maio
Com a queda de paredes e telhado de um imóvel utilizado pela Polícia Civil localizado próximo ao Trovão Azul, o subcomandante-geral da Brigada Militar, coronel Mario Ikeda, anuncia que o ônibus-cela será interditado. Schirmer complementa a decisão afirmando que o veículo “já havia cumprido a tarefa temporária de manter presos provisórios da Capital e que, após o incidente, ficou muito difícil encontrar local seguro e adequado para manter o veículo”.

27 de maio
Dois dias após a interdição, estacionado no Estádio Olímpico, o ônibus-cela volta a abrigar presos. Segundo o coronel Ikeda, lá ficaria até que os centros de triagem ficassem prontos. Schirmer anuncia a desativação do veículo.

28 de maio
Com o Trovão Azul fora de cena, presos voltam a ficar em viaturas e superlotar DPPAs. Diante da situação, e a pedido da Susepe, Schirmer volta a trás e informa, então, que o “ônibus-cela será desativado gradual e progressivamente“. A SSP improvisa um local na zona norte de Porto Alegre para estacionar o Trovão e as viaturas que custodiam presos.

7 de junho
Em sobrevoo, 11 viaturas são flagradas em volta do Trovão Azul. Os 20 presos dividem duas celas, separados por facções. Outros 16 detentos estão dentro de veículos vigiados por 30 PMs. O acesso ao terreno não é pavimentado e viaturas atolam. No local, há um galpão de alvenaria, onde os PMs se abrigam e guardam os alimentos que são fornecidos aos presos. Há apenas dois banheiros, e um é usado pelos policiais. Não há onde tomar banho e os PMs reclamam do mau cheiro.